Sec.Educação

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Secretário de Educação: Marcelo Verly

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

BIBLIOTECA NA ESCOLA


Graça Maria Fragoso

Resumo

Aborda reflexões referentes ao papel da biblioteca na escola. Aponta a necessidade de existir um órgão nacional com o intuito de cuidar especificamente dessas bibliotecas. Destaca a importância das secretarias estaduais e municipais em desenvolver estruturas permanentes na implementação e manutenção de bibliotecas escolares. As atividades das bibliotecas escolares necessitam estarem centradas no processo pedagógico. 

Palavras-chave: Biblioteca escolar; Leitura; Processo pedagógico; Bibliotecário escolar; Escola – Biblioteca 


1 INTRODUÇÃO

Longe de constituir mero depósito de livros, a biblioteca escolar é um centro ativo de aprendizagem. Nunca deve ser vista como mero apêndice das unidades escolares, mas como núcleo ligado ao pedagógico . A Bibliotecário trabalha com os educadores e não apenas para eles ou deles isolados. Integrada à comunidade escolar, a biblioteca proporcionará a seu publico leitor uma convivência harmoniosa com o mundo das idéias e da informação.. 
Graça Maria Fragoso 
  
São muitas, mas invariavelmente distorcidas, as visões que se costuma ter de uma biblioteca. Ora é lugar sagrado, onde se guardam objetos também sagrado, para desfrute de alguns eleitos, ora, sob uma óptica menos romântica, é apenas uma instituição burocratizada, que serve para consulta e pesquisa, assim como para armazenar bolor, cupins e traças. Para poucos, aqueles que a freqüentam assiduamente, ela constitui o local do encontro com o prazer de ler, conhecer, informar-se.

O fato é que, quando se trata de Brasil, a maioria das pessoas desconhece o verdadeiro papel de uma biblioteca em suas vidas e, portanto, na vida da comunidade. E esta afirmação se aplica tanto aos usuários potenciais quanto àqueles que de um modo ou outro têm responsabilidade pelo seu funcionamento, como as escolas. Por inúmeras razões, as bibliotecas escolares brasileiras estão ainda longe de cumprir sua importantíssima função no sistema educacional. Poucas instituições dispõem dos recursos e da visão necessários (duas condições que nem sempre andam juntas...) para manter uma biblioteca digna desse nome. E raros são os profissionais empenhados em prestar serviços que realmente dêem suporte ao aprendizado e à vida cultural da escola. 

2 ZELO E RABUGICE

 As mudanças têm sido profundas e muito mais velozes, em relação ao ritmo de desenvolvimento da vida humana na Terra até cem anos atrás. Os meios de comunicação se aperfeiçoaram e continuam a se transformar em uma progressão cada vez mais vertiginosa, já que, em matéria de tecnologia, o novo torna-se obsoleto praticamente a toda hora. No terreno da leitura, as inovações audiovisuais, se assim se pode defini-las – parecem, ameaçar o futuro do livro convencional.

No Brasil – como, em todo os chamados “países em via de desenvolvimento” - a questão não é apenas o quê se lê atualmente, mas quantos estão lendo. A pouca leitura pode ser efeito da concorrência com outros meios de comunicação, porém, entre nós, ela é principalmente o reflexo de um sistema educacional que há várias décadas vem se deteriorando. Por isso costuma-se dizer que a invenção da imprensa gerou um número quase ilimitado de leitores: sem planos e ações educacionais solidamente estruturados, ainda que se façam grandes esforços para reduzir o analfabetismo - e, no caso brasileiro, com reduzido resultado - ainda não se cria uma população leitora. E nem, é óbvio, cidadãos conscientes e atuantes.

Conseqüência direta ou indireta desse quadro, na grande maioria das escolas brasileiras, quando há bibliotecas prevalece um sistema arcaico de utilização e aproveitamento do acervo e não apenas por indigência material.

 Mesmo aquelas que podem se dar o luxo de algum aparato tecnológico e de práticas mais modernas relutam em investir nos recursos humanos, deixando que alguns velhos cacoetes culturais perdurem. Por exemplo, o de improvisar um guardião que terá como missão, de fato, guardar o geralmente precário material bibliográfico. E o fará, geralmente também, com um zelo e uma rabugice de burocrata. Os leitores da assim chamada biblioteca - crianças e adolescentes, em sua maioria - irão freqüentá-la com igual despreparo e desinteresse, sub-utilizando sempre os possíveis recursos. E o contato prazeroso com a leitura - já de si tão problemático nestes tempos de cultura visual -, este sim, passa por metamorfose definitiva: ler se torna mais um entre os deveres escolares.

3 DE NORTE A SUL

A situação da biblioteca escolar no Brasil é reflexo do contexto em que ela tem existência, qual seja, o da educação. Portanto, não é grande surpresa a dificuldade em se obterem dados atualizados sobre essa situação - quantas escolas possuem bibliotecas, o porte de seus acervos, quais têm profissionais especializados em seu comando e daí por diante.

De norte a sul do País", constatamos, as escolas enfrentam inúmeras dificuldades para organizar uma biblioteca, manter - mesmo precariamente - as que existem ou ainda para tentar integrá-las no processo educacional."

Com isso, milhões de alunos ficam privados de material bibliográfico, leitura e de outras fontes de informação além do próprio professor e do material didático. Em última análise, então, educandos sem acesso a uma biblioteca em sua própria escola correm mais o risco de ficar à margem de um ensino democratizado.

Como não existe um órgão nacional que cuide especificamente de bibliotecas escolares, as questões relativas a elas têm que ser administradas pelas Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. E mesmo estas não dispõem, em sua maioria, de dados precisos e atuais sobre a situação das bibliotecas escolares.

4 AS DUAS FUNÇÕES

Embora tão marginalizada de nosso sistema educacional, a biblioteca escolar tem funções fundamentais a desempenhar e que podem ser agrupadas em duas categorias - a educativa e a cultural.

Na função educativa, ela representa um reforço à ação do aluno e do professor. Quanto ao primeiro, desenvolvendo habilidades de estudo independente, agindo como instrumento de auto-educação, motivando a uma busca do conhecimento, incrementando a leitura e ainda auxiliando na formação de hábitos e atitudes de manuseio, consulta e utilização do livro, da biblioteca e da informação. Quanto à atuação do educador e da instituição, a biblioteca complementa as informações básicas e oferece seus recursos e serviços à comunidade escolar de maneira a atender as necessidades do planejamento curricular.

Em sua função cultural, a biblioteca de uma escola torna-se complemento da educação formal, ao oferecer múltiplas possibilidades de leitura e, com isso, levar os alunos a ampliar seus conhecimentos e suas idéias acerca do mundo. Pode contribuir para a formação de uma atitude positiva, frente à leitura e, em certa medida, participar das ações da comunidade escolar.

Nessas funções, por assim dizer, "ideais" de uma biblioteca escolar, estariam implícitos seus objetivos como instituição, que relacionamos a seguir:


a)      cooperar com o currículo da escola no atendimento às necessidades dos alunos, dos professores e dos demais elementos da comunidade escolar;


b)      estimular e orientar a comunidade escolar em suas consultas e leituras, favorecendo o desenvolvimento da capacidade de selecionar e avaliar;


c)      incentivar os educandos a pensar de forma crítica, reflexiva, analítica e criadora, orientados por equipes inter-relacionadas (educadores + bibliotecários);


d)      proporcionar aos leitores materiais diversos e serviços bibliotecários adequados ao seu aperfeiçoamento e desenvolvimento individual e coletivo;


e)      promover a interação educador -bibliotecário- aluno, facilitando o processo ensino-aprendizagem;


f)        oferecer um mecanismo para a democratização da educação, permitindo o acesso de um maior número de crianças e jovens a materiais educativos e, através disso, dar oportunidade ao desenvolvimento de cada aluno a partir de suas atitudes individuais;


g)      contribuir para que o educador amplie sua percepção dos problemas educacionais, oferecendo-lhe informações que o ajudem a tomar decisões no sentido de solucioná-los., tendo como ponto de partida valores éticos e cidadãos.

5 DE GUARDIÃO A MEDIADOR

De nada serviria uma bela biblioteca escolar, com espaço físico e acervo adequados às necessidades escolar se, para exercer as funções e cumprir seus objetivos, não estiver em seu comando um profissional consciente, com sensibilidade e habilitações básicas para manter esse espaço de cultura e informação bem azeitado e atraente, onde a técnica é utilizada para produzir conhecimento . Entre as habilitações se incluem: conhecimentos subjetivos – interativos, cognitivos e éticos; conhecimentos profissionais – fontes de informação, organização e classificação, geração e uso de bases de dados; conhecimentos pedagógicos – adaptação dos conteúdos específicos para ações de orientação e instrução (formar e informar ) . É verdade que a maior parte das bibliotecas escolares brasileiras não conta com o bibliotecário à sua frente. Uma série de motivos podem ser apontados como causas desta situação.

Portanto, para atuar como bibliotecário escolar, o profissional deve ser essencialmente um leitor e ter, entre outras habilidades, competência para oferecer oportunidades, materiais e atividades específicas, visando despertar o interesse da comunidade escolar pela biblioteca para, a partir daí, poder trabalhar no desenvolvimento de métodos leitores.

A gerencia das atividades requer planejamento e criatividade por parte do profissional que atua na biblioteca . Um exemplo: ao narrar histórias para crianças das primeiras séries, ele poderá abrir caminho leitura como opção e não obrigação . Neste ponto, é oportuna uma observação: não se quer falar em hábito de ler, uma atitude mecânica e obrigatória como, por exemplo, escovar dentes; fala-se, sim, daquela "compulsão" de procurar e saborear determinado livro ou texto, daquela necessidade tão natural que se pode compará-la à de um gourmet que habitualmente antegoza e depois frui um belo prato.

Ler poemas, para despertar emoções e sentidos; realizar exposições, entrevistas; promover a leitura de textos teatrais; oferecer atividades em diversos campos da arte, como a mímica, a dramatização, a pintura; eis algumas das ações que bibliotecários escolares podem e devem empreender no recinto da biblioteca ou fora dela, mas sempre em consonância com o currículo e coadjuvando o trabalho do corpo docente.

Em síntese, sua grande tarefa é tornar a biblioteca da escola um lugar agradável, dinâmico, onde prevaleça um clima de harmonia entre ele e o público, seja qual for a faixa etária ou a posição deste na hierarquia da escola.

A principal barreira a ser vencida nesse convívio parece ser a que tacitamente se ergue entre o educador e o bibliotecário. Este, por nem sempre estar bem entrosado com o ambiente educacional, costuma fechar-se em seus "domínios", tornando-se apenas mero entregador de livros. O professor, por utilizar exclusiva ou principalmente a aula discursiva, uma obsolescência pedagógica, prescinde do bibliotecário e não o procura. E assim se têm perdido ótimas oportunidades de um trabalho entrosado que propiciaria a aprendizagem baseada na indagação e na busca de conhecimentos mais amplos.

Assim, apresenta-se um rol das principais funções e atribuições que deveriam fazer parte do cotidiano do bibliotecário escolar:


a)      participar ativamente do processo educacional, planejando junto ao quadro pedagógico as atividades curriculares. E isso deve ser feito para todas as disciplinas, acompanhando o desenvolvimento do programa, colocando à disposição da comunidades escolar materiais que complementem a informação transmitida em classe;


b)      fazer da biblioteca um local descontraído, de modo a que os leitores se sintam atraídos para ela;


c)      estimular os alunos, através de atividades simples, desde o maternal, a se envolverem com propostas leitoras;


d)      estimular os educadores a vivenciarem a biblioteca da escola como um espaço pedagógico de educação continuada;


e)      proporcionar informações básicas que permitam ao aluno formular juízos inteligentes na vida cotidiana;


f)        oferecer elementos que promovam a apreciação literária, a avaliação estética e ética, tanto quanto o conhecimento dos fatos;


g)      favorecer o contato entre alunos de idades diversas;


h)      proclamar uma biblioteca para leitores solidários e não para leituras solitárias .

 O que se pretende, com tal comportamento profissional, é fazer com que a biblioteca escolar seja o agente de transformação do ensino, à medida em que provoque mudanças pedagógicas na escola. No caso do Brasil, que passa neste momento por tantas carências e frustrações em vários segmentos da sociedade, principalmente na área educacional, talvez a construção e a conquista coletiva da biblioteca possa transformar a escola em ponto de reencontro, participação e integração. 

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo: Lafore. 1989. 

AZEVEDO, Eliane. Bibliotecas Escolares não contribuem para o estímulo à pesquisa e à leitura. Folha de São Paulo, 30 maio 1986. Cad. 2. Educação e Ciência, p. 18. 

FAZENDA, Ivani Catarina. Prática interdisciplinar na escola. São Paulo: Cortez, 1992. 

FRAGOSO, Graça Maria. O encontro do autor com o leitor. Revista AmaeEducando, Belo Horizonte, n.219, p.30-31, maio 1991. 

___. La biblioteca escolar. Educación y biblioteca, Madrid, n.46, p.20-22, abr. 1994. 

___. Mudar para preservar . Amae educando, Belo Horizonte, n. 305 , p. 17, mar. 2002. 

___.Formando Leitor . Revista do Professor . Porto Alegre, n.71, p. 5-8, jul./set.2002. 

FREIRE, Paulo. A importância do ato ler. São Paulo: Cortez, 1984. 

GUERRA, Rosangela. Uma Bibliotecária assume seu papel de Educadora. Revista Escola, São Paulo, n.58, p.28-9, jun. 1992. 

MARTÍNEZ, Lucila; CALVI, Gian . Biblioteca & Escola Criativa: estratégias para uma gerência renovadora das bibliotecas públicas e escolares. Petrópolis: Autores & Agentes & Associados, 1994. 

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domingo, 24 de outubro de 2010


Começar a formar leitores


Continua a reconhecer-se como insubstituível o papel dos educadores no desenvolvimento das competências de leitura e no incentivo ao gosto de ler, sobretudo nos casos em que as crianças foram, por esta ou aquela razão, subtraídas a um convívio regular e feliz com os livros, no meio familiar.


Neste particular aspecto, não devemos iludir-nos: a investigação tem confirmado, escreve Ramiro Marques, que as crianças que melhor lêem na escola primária são as que se habituaram a ouvir ler histórias desde bebés e possuem um ambiente familiar onde a leitura e a escrita são actividades diárias. Recorde-se, aliás, que a aprendizagem da leitura, pelas crianças pequenas, é uma actividade diária que decorre em casa, na pré-escola e na rua, e em todas as circunstâncias. Schickedanz, citado por Ramiro Marques, afirma: Os métodos que os pais usam para ensinar as crianças a ler diferem dos usados na escola primária. Os pais ajudam os filhos a aprender a ler todos os dias, quando os levam ao supermercado ou quando lhes apontam os sinais de trânsito, por exemplo. E isto é tanto mais importante, prossegue o autor de Ensinar a Ler, Aprender a Ler, quanto se sabe que as crianças com melhor desempenho na leitura e escrita são as que tiveram muitas experiências com a escrita durante os primeiros anos de vida. Para essas crianças, ler faz parte das suas vidas, muito tempo antes da escola primária.

Felicidade clandestina -Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010


Jardins - Rubem Alves

Rubem AlvesMansamente pastam as ovelhas…São Paulo, Papirus Editora, 2002
Excertos adaptados


Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros eram um tapete mágico que me levava instantaneamente a viajar pelo mundo… Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e tornava-me um outro. Vejo-me sentado no chão, num dos quartos do sótão do meu avô. Via figuras. Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas alguém colara gravuras, recortadas de revistas. Não sei quem o fez. Só sei que quem o fez amava as crianças. Eu passava horas a ver as figuras e nunca me cansava de as ver.


Um outro livro que me encantava era o Jeca Tatu, do Monteiro Lobato. Começava assim: "Jeca Tatu era um pobre caboclo…". De tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabê-lo de cor. "De cor": no coração. Aquilo que o coração ama não é jamais esquecido. E eu "lia-o" para a minha tia Mema, que estava doente, presa numa cadeira de baloiço. Ela ria com o seu sorriso suave, ouvindo a minha leitura.


Um outro livro que eu amava pertencera à minha mãe quando era criança. Era um livro muito velho. Façam as contas: a minha mãe nasceu em 1896… Na capa havia um menino e uma menina que brincavam com o globo terrestre. Era um livro que me fazia viajar por países e povos distantes e estranhos. Gravuras apenas. Esquimós, com as suas roupas de couro, dando tiros para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Em baixo, a explicação: "Onde os esquimós vivem, a noite é muito longa; dura seis meses". Um crocodilo, boca enorme aberta, com os seus dentes pontiagudos, e um negro a arrastar-se na sua direcção, tendo na mão direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria era introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse conta. Quando o crocodilo fechasse a boca estaria fisgado e haveria festa e comedoria!


Na gravura dedicada aos Estados Unidos havia um edifício, com a explicação assombrosa: "Nos Estados Unidos há casas com dez andares…". Mas a gravura que mais mexia comigo representava um menino e uma menina a brincar, querendo fazer um jardim. Na verdade, era mais que um jardim. Era um minicenário. Haviam feito montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago cuja água, transbordando, transformava-se num riachinho.


E, nas suas margens, o menino e a menina haviam plantado uma floresta de pequenas plantas e musgos. A menina enchia o lago com um regador. Eu não me contentava em ver o jardim: largava o livro e ia para a horta, com a ideia de plantar um jardim parecido. E assim passava toda uma tarde, fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã como as árvores da floresta…

Onde foi parar o livro da minha mãe? Não sei. Também não importa. Ele continua aberto dentro de mim.

Livro fechado
Era uma vez um livro. Um livro fechado. Tristemente fechado. Irremediavelmente fechado.
Nunca ninguém o abrira nem sequer para ler as primeiras linhas da primeira página das muitas que o livro tinha para oferecer.
Quem o comprara trouxera-o para casa e, provavelmente insensível ao que o livro valia, ao que o livro continha, enfiara-o numa prateleira, ao lado de muitos outros.
Ali estava. Ali ficou.
Um dia, mais não podendo, queixou-se:
— Ninguém me leu. Ninguém me liga.
Ao lado, um colega disse:
— Desconfio que, nesta estante, haverá muitos outros como tu.
— É o teu caso? — perguntou, ansiosamente, o livro que nunca tinha sido aberto.
— Por sinal, não — esclareceu o colega, um respeitável calhamaço. — Estou todo sublinhado. Fui lido e relido. Sou um livro de estudo.
— Quem me dera essa sorte — disse outro livro ao lado, a entrar na conversa. — Por mim só me passaram os olhos. Página sim, página não… Mas, enfim, já prestei para alguma coisa.
— Eu também — falou, perto deles, um livrinho estreito. — Durante muito tempo, servi de calço a uma mesa que tinha um pé mais curto.
— Isso não é trabalho para livro — estranhou o calhamaço.
— À falta de outro… — conformou-se o livro estreitinho.
Escutando os seus companheiros de estante, o livro que nunca fora aberto sentiu uma secreta inveja. Ao menos, tinham para contar, ao passo que ele… Suspirou.
Não chegou ao fim do suspiro, porque duas mãos o foram buscar, ao aperto da prateleira. As mãos pegaram nele e poisaram-no sobre uns joelhos.
— Tem bonecos esse livro? — perguntou a voz de uma menina, debruçada para o livro, ainda por abrir.
— Se tem! Muitos bonecos, muitas histórias que eu vou ler-te — disse uma voz mais grave, a quem pertenciam as mãos que escolheram o livro da estante.
Começou a folheá-lo, e enquanto lhe alisava as primeiras páginas, foi dizendo:
— Este livro tem uma história. Comprei-o no dia em que tu nasceste. Guardei-o para ti, até hoje. É um livro muito especial.
— Lê — pediu a voz da menina.
E o pai da menina leu. E o livro aberto deixou que o lessem, de ponta a ponta.
Às vezes vale a pena esperar.
António Torrado
Mensagem Nacional para o Dia Internacional do Livro Infantil
2 de Abril de 1997